Os olhos da sereia: a água, o concreto, o deserto e o direito à cidade (artigo)

​Por Jaqueline Almeida​

Hoje acordei às 7h e uma das primeiras coisas que fiz foi abrir a torneira para ver se caia alguma gota de água. Como nem um pingo ressoou de dentro dos canos, fui para o telefone ligar para a Embasa para saber sobre a reclamação que fiz há 4 dias atrás. A resposta que obtive é que não existe nenhum motivo específico para que a Rua Aiocá, no Morro do Alto da Sereia, no Rio Vermelho, esteja há quase uma semana sem água.

Falei também com a secretária do responsável que admnistra o aluguel da casa aonde moro, e ela me disse que também ligou para a Embasa na sexta, sendo que já tinha ligado na quinta, e o que informaram a ela é que os técnicos não vieram até o morro porque faltou material (oi?!! E ninguém avisa e ninguém vem depois). E que o problema que aqui relato, principalmente na rua aonde moro, é antigo de pouco tempo – desde o ano passado... Então imagina ai a história.

É por é por isto que resolvi compartilhar este texto que escrevi ontem durante a escuridão da madrugada.

Há alguns dias teci uma conversa com um novo amigo sobre as mudanças advindas da reforma da orla de Salvador, principalmente no bairro da Barra – local aonde os vendedores ambulantes foram retirados e jogados ao vento até aonde eu saiba (alguém pode me responder aonde eles estão?). Este meu novo amigo, que escreve sua dissertação justamente sobre este movimento da reforma e dos vendedores atiçou meu olhar e meus sentidos pra esta movimentação toda que acontece na cidade.
Confesso que no meu ir e vir de compromisso olhava para esta reforma como algo completamente externo e distante de mim. Até o dia que começou a faltar água em minha casa por dias seguidos e até o dia que estive na Barra à noite com minha filha.

A falta d´água – em alguns bairros da periferia pode ser uma constante e isto é um fato. Mas aqui no morro aonde moro, esta falta de água sempre foi justificada por algum motivo. Mas agora, recentemente, esta água que não desce da torneira me pareceu ter um tanto ver com a construção de 3 prédios empresariais na Av. Oceânica, lugar aonde o morro começa ou termina.

E o que tudo isto tem a ver com a reforma? Bem, eu não sei. Mas estes novos prédios começaram a ser construídos um pouco antes desta bendita reforma chegar no bairro do Rio Vermelho, sendo que um deles está bem encravado em terras do morro e já foi até o responsável por uma falta d’água explícita, quando alguma máquina acertou um dos encanamentos e nos deixou dias a fio tomando banho de cuia.

Enfim, tenho eu pensado que é bem justificável deixar de fornecer água para os moradores de um morro em benefício de construções de gente interessante, gente que faz a economia girar, gente de capital, gente que parece gostar destas reformas. Aí é muito fácil desligar a transmissão da água para tirar de um lado e levar para um outro mais interessante, sem nenhuma informação que diga ao povo do morro que o banho vai ter que ser econômico e a roupa suja vai ficar acumulada. É o que penso, já que não tem nenhuma justificativa plausível para a torneira seca. A Embasa não dá nenhuma informação concreta – eu já tinha ligado ligudo duas vezes pedindo informação e só me dão 48 horas para alguma coisa acontecer. Mas nada acontece. E enquanto isto eu vou ganhando músculos com levantamento de balde.

De concreto mesmo só a reforma que acontece no bairro com suas esquisitices (como um amontoado de tijolos tenebrosos bem em frente à praia da Paciência que dizem ser um posto da Embasa). Eu não sou técnica de nada, não entendo de engenharia, nem de arquitetura, mas esta reforma tem uma cara feia de tudo cinza. Mas será que minha miopia tem piorado e eu não estou vendo mais as coisas direito mesmo?

E eu, que não estava olhando direito para este trambolho cinza sendo erguido na nossa cidade, comecei a reparar com mais atenção nas coisas que este movimento tem me afetado e afetado aos demais. Não sei se nada disto da água tem a ver, mas para mim tem. Talvez eu esteja conspirando metaforicamente, mas espero que isto não seja um motivo para impulsionar com força uma saída desejosa de quem mora no morro para abrir caminhos de interesses políticos dentro das terras que levam ao mar.

Obs: para quem quer saber como sobrevivi nos últimos dias sem água, te conto um segredo. Recebemos a visita de uma bruxa chilena que mora em uma cidade que fica no deserto de Atacama, Lá, ela me contou, a cidade virou para turista e durante 15 dias, mais ou menos, eles ficam sem água porque a água é direcionada para os hóteis e resorts - daqueles de modelos iguais que existe em vários locais do mundo. Ela me ensinou os mistérios de lavar pratos e tomar banho com quase nada de água e não ficar de mau humor.

Pronto. Esta é a história da água.

Depois vem o susto com a reforma.

Lá fui eu quinta-feira à noite para a Barra para uma reunião de trabalho. Fui com Brisa e me perdi. Não sabia como chegar na rua do encontro. Os ônibus entram e saem agora, dão meia volta e parecem voltar para o mesmo lugar. Assim desci no lugar errado e fui andando. O bom foi que encontrei uma amiga da faculdade no meio do caminho e nos relembramos. Como já estava um pouco atrasada fui sem reparar em nada. Daí segui meu rumo, me reuni e umas 20h30 fui embora para casa. Tive que caminhar um pouco até o ponto e senti uma coisa estranha.

Senti uma opressão. Uma coisa me mandando embora. Um grito. Uma voz que me dizia: “Saia daqui.” Nunca tinha sentido isto, mesmo em tempos em que eu era uma jovem que aprontava pelas ruas de Salvador. Talvez a cabeça de mãe tenha me despertado para estes sentidos. Uma necessidade de resguardar a cria. Eu me senti assim, com vontade de ir logo embora. Aquele lugar parecia que não era para mim. O todo cinzento, mesmo com o som das ondas do mar, me deu um aperto de vazio. Tinha até gente na rua, mas eu me senti sozinha. Rezei para chegar meu buzu logo e fui para casa.
Fui dormir com esta opressão no peito. Logo no dia seguinte, ainda sem água, fui pesquisar para saber se tinha alguma informação sobre a falta do aguadeiro no Rio Vermelho. Só achei algo dizendo sobre obras da Embasa na região mas nada citava a falta de água.

Daí parei em um blog do bairro que trazia uma ata da reunião sobre a reforma no bairro. Achei interessante isto e, tendo meu interesse voltado para este tema parei para ler:
http://blogdoriovermelho.blogspot.com.br/2015/07/confira-ata-de-reuniao-sobre-as-obras.html

Me surpreendi, ou não – como diria Caetano Veloso – com o tanto de absurdo que tem dentro destas mudanças, mas também surgiu um alento no meu coração em saber que tem gente atenta, fiscalizando e cobrando...Me deu até vontade de chegar junto... mas pelo menos resolvi que vou acompanhar.

Assim, percebi mais claramente o quanto esta reforma toda tem a intenção em colocar a orla da cidade dentro de um padrão cinzento de baixa qualidade, com aspecto de zumbi. Acho que foi isto que senti no dia que passei na Barra – uma cidade morta. E depois de saber que este ano, por conta da reforma, muitas árvores foram retiradas para dá lugar ao cimento e à árvores que não combinam com a paisagem, entendi ainda mais porque aquela sensação absurda de opressão. O concreto havia me massacrado...

Sábado fui na Barra de novo para uma nova reunião e novas percepções. Comparei à Barra antiga que eu conhecia entre o porto e o farol – com uma vida louca, transviada, barulhenta e caótica, com a nova barra: cinza, silenciosa e higiênica. A minha impressão é que aquele espaço que tinha uma vida absurda mas vívida, tinha se tornado a extensão de uma praça do shopping Center da Barra com seu nariz empinado e sua cara de assepsia. Daí entendi porque a angústia que senti ao estar ali com minha filha nos braços. A mesma angústia que sinto ao chegar em lugares que querem te expulsar de qualquer jeito porque acham que você não pertence a eles. Eu nunca tinha me sentindo assim na Barra, mesmo na sua vida loca de antigamente e os olhares desdenhosos de quem não quer uma criatura magra e preta por ali.

Agora fiquei pensando, com toda esta falta de água e com a reforma que acontece no Rio Vermelho, que eu poderia me sentir assim no bairro que escolhi para morar. De me senti expulsa de um lugar que eu aprendi a admirar e a gostar.

E é por isto que escrevo este texto, como uma forma de colocar para fora este receio, tomar uma iniciativa e ir para a ação, ao invés de ficar só confabulando internamente.

Agora eu sigo acompanhando mais atenta o que acontece na cidade, no bairro e me questionando que tipo de cidadã soteropolitana eu sou e que eu quero ser. Já que ainda mooa em Salvador e, por hora, vivo com minha filha aqui, penso que a mudança que realizo dentro de mim não adianta nada se fica só comigo. E acho que é por isto até que toda esta história me fez lembrar de um livro que comprei há algum tempo mas que nunca terminei de ler “O Espaço do Cidadão” de Milton Santos que me faz questionar qual é o meu espaço como cidadã.

Em um trecho, que me chamou a atenção, ele me esclarece sobre os diálogos internos que tenho tido nos últimos dias sobre tudo isto que tem acontecido e que tenho percebido:

Na grande cidade, há cidadãos de diversas ordens ou classes, desde o que, farto de recursos, podem utilizar a metrópole toda, até o que, por falta de meios, somente a utiliza parcialmente, como se fosse uma pequena cidade, uma cidade local.

A rede urbana, o sistema de cidades, também tem significados diversos segundo a posição financeira do indivíduo. Há, um extremo,os que podem utilizar todos os recursos aí presentes, seja porque são atingidos pelos fluxos em que, tornando mercadoria, o trabalho dos outros se transforma, seja porque eles próprios, tornados fluxos, podem sair à busca daqueles bens e serviços que desejam adquirir. Na outra extremidade, há os que nem podem levar ao mercado o que produzem, que desconhecem o destino que vai ter o resultado do seu próprio trabalho, os que, pobres de recursos, são prisioneiros do lugar, isto é, dos preços e das carências locais. Para estes, a rede urbana é uma realidade onírica, pertence ao domínio do sonho insatisfeito, embora também seja uma realidade objetiva.

Para muitos, a rede urbana existente e a rede urbana de serviços correspondente são apenas para os outros. Por isso são cidadãos diminuídos, incompletos.


As condições existentes nesta ou naquela região determinam essa desigualdade no valor de cada pessoa, tais distorções contribuindo para que o homem passe literalmente a valer em função do lugar onde vive. Essas distorções devem ser corrigidas, em nome da cidadania. Mas apesar de todo este transtorno, e como acredito que tudo esteja certo, tudo dentro da Ordem, estou aqui aprendendo algumas lições com este acontecimento:

1- Deixar de olhar só para o meu umbigo e ter um pensamento mais comunitário. Tenho aprendido isto com uma gente do Quilombo do Jirau Grande, em Maragojipe, que me ensina, através das suas mulheres, que o benefício tem que ser para todos e não somente para um ou para poucos;
2- A perceber o quanto gasto de água. O quanto posso tomar banho e lavar pratos com quase nada. Que posso reaproveitar a água do banho e dos pratos para jogar no vaso e que preciso ter um pensamento mais consciente sobre a utilização deste recurso.
3- A ampliar meu olhar para as situações que me cercam. A participar mais ativamente das questões políticas que interferem na cidade, mesmo que atue apenas escrevendo histórias. Assim volto ao aprendizado um e deixo de olhar só para meu umbigo já que também sou o todo e faço parte do todo;


Agora, já 08h30 da manhã vou voltar aqui à minha vida de mãe cuidando de dar um banho mínimo na cria.

P.s: Não posso terminar de escrever este texto sem deixar de agradecer à mamãe d’água que me cerca por todos os lados. Gratidão pelos ensinamentos.

E se sentir, se achar que deve, por favor compartilhe esta história​

Os olhos da sereia: a água, o concreto, o deserto e o direito à cidade (artigo)

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