Por Tasso Franco*
A orla marítima de Salvador é dividida em duas partes: a Atlântica, que vai das praias do Farol da Barra à de Aleluia de Itapuã; e a da Baía de Todos os Santos, entre as praias do Porto da Barra e São Tomé de Paripe. A capital baiana, a exemplo do Rio de Janeiro, é uma das poucas cidades do país que tem esse privilégio de ser banhada por águas revoltas de mar aberto e águas em calmaria, represadas por uma baía com recortes belíssimos, enseadas, península e rios que descem das serras do Recôncavo e da Chapada Diamantina.
Ainda assim, ao longo da história, têm as orlas mais maltratadas do país e com ocupações de toda natureza, desde quiosques para vendas de bebidas alcoólicas e tendas de alvenaria onde se serve de tudo e se reside. Essa desordem, registre, não é uma coisa exclusiva da atual administração municipal, ela apenas piorou o que já existia, mas, uma situação que vem se arrastando há 100 anos quando o mar deixou de ser contemplativo para se tornar área para curar males da saúde pública e referência de lazer.
Os primeiros informes sobre poluição ambiental numa praia de Salvador datam da época das Capitanias Hereditárias, entre 1536 e 1549, durante a “guerra” entre os tupinambás organizados por Catarina Paraguaçu e Caramuru contra a exploração dos nativos por Francisco Pereira Coutinho, o Rusticão. Isolado na Vila Velha do Pereira, atual Porto da Barra, o Rusticão teve que se refugiar em Porto Seguro, e os nativos além de queimarem parte das casas da vila ainda lançaram os canhões bocas de fogo dos portugueses na praia.
Com isso, as peças da artilharia ficariam inutilizadas e devem ter sido resgatadas por Tomé de Souza, a partir de 1549. O próprio Tomé ao chegar a Baía de Todos os Santos não desembarcou no dia 29 de março, só fazendo isso no início de abril protegido por uma formação de “picas” com soldados lanceiros amparando-o à moda suíça. Ao instalar a cidade no altiplano da atual Praça Municipal e com sua expansão durante o período colonial para Além do Carmo, São Bento, roças do Tororó, Ribeira do Góis e Baixa dos Sapateiros os detritos dessas residências eram lançados ao mar pelos escravos em barricas.
Ou seja, quem tinha espaços em roças e áreas verdes fazia coco e xixi nesses locais a céu aberto e quem vivia na área urbana mais central, no Centro Histórico atual em mancha do Campo Grande ao Carmo usava penicos, bacias e vasos, e armazenava os dejetos em barricas que eram lançados ao mar, especialmente na praia da Preguiça e adjacências. Era uma fedentina horrível. Preservavam as ribeiras do Comércio que serviam de atracadouros para as naus estrangeiras e aquelas que faziam o trajeto para o Recôncavo.
Somente no início do século passado, quando Salvador já tinha mais de 350 anos foi que a praia passou a ser apreciada como elemento de lazer e também área arejada para curar males da saúde. Os planos urbanísticos já na República Velha colocaram plantas de esgotos sanitários e os barris de coco desapareceram de cena. A praia, até então só usada por pescadores artesanais ao longo das orlas, como aliás ainda ocorre até os dias atuais, virou objeto de desejo da classe média alta, e os jovens passaram a exibir seus dotes físicos nesses espaços, inicialmente na Barra, com o advento dos shortes estilizados e maiôs.
Lembro que nos anos iniciais da década de 1960, nos jogos do Brasília em Roma e no Cantagalo, não havia barraqueiros e vendedores de produtos diversos nas praias, e após os babas e as partidas do campeonato de praia, as comemorações eram feitas nos bares das Ruas Barão de Cotegipe e Graciliano de Freitas. Já na praia Pituba, ainda área de veraneio com a maioria das ruas ainda sem calçamento, nos verões do final da década, algumas tendas já vendiam cervejas e acarajés.
A partir dos anos 1970, a situação desandou de vez e as orlas foram ocupadas de ponta-a-ponta por todo tipo de traquitana, barracas, tendas, quiosques, vendedores de toda natureza, gerando essa desordem que existe até os dias atuais. A Terceira Ponte inaugurou, nessa época, as melhores barracas da cidade e imaginava-se que a Prefeitura, desde aquele momento, pudesse organizar um modelo que fosse capaz de atender aos banhistas e não degradasse tanto o meio ambiente. Ledo engano.
Salvador tem uma característica de outras cidades litorâneas, e não adianta importar modelos bem sucedidos de ocupação de espaços da orla como em Fortaleza, Maceió, Rio de Janeiro, Guarujá, Santos, etc, porque aqui a cultura da desordem se arraigou de tal forma na sociedade que esses modelos viram letras mortas. Uma baiana de acarajé arma uma tenda onde deseja, e pode ser em frente ao Farol da Barra ou na praia de São Tomé, e fica por isso mesmo rezando aqueles que primam pela desordem que se trata de uma tradição, de povo de santo e por aí vai.
Agora, a Prefeitura está tentando, mais uma vez, dar um mínimo de decência ao favelão que deixou prosperar nos últimos anos na Orla Atlântica com a derrubada de barracas inservíveis e aquelas de alvenaria. Vai adiantar pouco ou quase nada porque não tem equipes para fiscalizar as duas orlas e se você quer assistir sujeira, bagunça e um exemplo pronto e acabado da cultura da “esculhambação” vá a praia da Ribeira.
*Tasso Franco é jornalista e editor do site www.bahiaja.com.br.