"Resta ainda compreender a relação que o povo-de-santo estabelecia com o orixá, Iemanjá consagrado às águas salgadas. Atualmente, os festejos atribuídos a esta entidade se concentram no bairro do Rio Vermelho, no dia 02 de fevereiro, sendo uma das festas que compõe o calendário turístico do Estado. A notícia mais antiga que tive acesso em relação aos festejos dedicados à rainha das águas foi à descrição de Manuel Querino, no século XIX, momento em que os organizadores da festa ainda eram escravos africanos e ela ocorria em outro espaço.
Entre estas, sobressaía a festa da mãe dágua (sereia) e a tradição guardou, como a de maior nomeada, a que se realizou, por muitos anos atrás, e em frente ao antigo forte de S. Bartolomeu, em Itapagipe, hoje demolido, e na 3ª dominga de dezembro, à qual compareceriam para mais de 2.000 africanos. A ela se achavam presentes todos os pais de terreiro da cidade, sob a direção do tio Ataré, que residia à rua do Bispo, no citado bairro. Os pais de terreiro trajavam roupas de brim de linho branco, e chapeu de Chile, ostentavam relógio, chapéu de sol de sêda, e comprido correntão de ouro (...) Durava a festa quinze dias, nas quais abundavam os batuques (candomblés), o efó, o abará, o carneiro, o bode, etc., com o azeite de dendê. Em certo dia, Ataré anunciava à multidão que se iam realizar as homenagens à mãe dágua, e a grande talha ou pote de barro cozido se enchia logo de presentes, como fôssem: pentes, frascos de pomada, frascos de cheiro, côvados de fazendas e era atirada ao mar, na meia travessa, ponto muito conhecido dos marinheiros, principalmente quando reina vento forte. Estava, pois, concluída a festa da mãe dágua e os festeiros se recolhiam às casas do senhorio.58 (sic) - 58 QUERINO, Manuel. A Bahia de Outrora. Bahia: Livraria Progresso Editora, 1946. Coleção Estudos Brasileiros, Série 1ª. Vol. 3, p. 116-7.
Por volta de 1930, o “presente” entregue à Iemanjá apresentava diferenças significativas em relação àquela festa descrita por Querino. Os festejos ocorriam em diversos pontos da cidade, mas destacavam-se as celebrações realizadas no Rio Vermelho, região que, como foi dito anteriormente, concentrava um grande número de terreiros de candomblé. Tratava-se de um evento de grande popularidade em Salvador, um dos que ofereciam grande visibilidade às práticas religiosas afro-brasileiras. O jornal A Tarde de 03 de fevereiro de 1939, publicou detalhes curiosos que ocorreram em meio à festa:
Na praia de Sant’Anna, banhistas e saveiros enfeitados. Em terra, o povo. Moças de lenço a cabeça e sapatos de enorme sola de cortiça; moreninhas de olhos pretos como jaboticabas maduras e senhores austeros, tudo se misturando e se confundindo, tudo a queimar-se sob o horrível ardor de um sol inclemente. (...) - Vae sahir o presente! Enchese a praia. Os barcos estão em fila. No primeiro, grandes cestos carregados. Peças de panno, perfumes, objetctos de toilette, bugigangas, potes, etc. Nos outros barcos, devotos de Janaina. Há uma mulata gorda que quer ir. Os saveiros estão cheios. - Eu vou nesse... - Nesse não tem mais logar. Há alguém que aconselha: - Vá a nado, minha tia. Oie, meu fio, isso é um sacrifício que eu faço pra minha mãe Yemanjá. Partem os saveiros. Vão lá para longe. Para o meio do mar. Vão cumprir um rito, uma promessa de fé.59(sic) - 59 “Uma Festa da ‘Mãe D’Agua’. Entre saveiros embandeirados e apinhados de gente os pescadores do Rio Vermelho presentearam, hontem, sua Janaina.” (03/02/1939) Jornal A Tarde.
Na matéria acima é clara a tentativa de folclorização das práticas religiosas afro-brasileiras, a conotação da reportagem já demonstrava uma leitura exótica das atividades. A narrativa do repórter é quase um convite para que as pessoas fossem assistir ao “espetáculo” da entrega dos presentes à Iemanjá. Além disso, sua descrição demonstra que pessoas de segmentos sociais diversos eram atraídas pela cerimônia.
O festejo para Iemanjá descrito pela reportagem supracitada ocorreu no Rio Vermelho, região retratada no postal abaixo. O grande número de pessoas vestidas de branco, com roupas típicas do candomblé; como indicam as batas e a forma de amarrar o torço à cabeça, e principalmente, os presentes que levam em direção aos barcos, fazem crer que a fotografia foi feita no dia dedicado à Mãe d’água, provavelmente no início da década de 1920, como constava no verso do cartão, além disso a paisagem do Rio Vermelho era equivalente a outros postais datados dos anos 20.
A festa realizada para a “rainha do mar” adquiriu grande popularidade em Salvador, o que talvez possa ser explicado pela confluência de leituras míticas das três matrizes que compunham a população soteropolitana. Na tradição européia, Homero registrou a luta de Ulysses, para se livrar da atração que Yara exercia sobre ele; foi obrigado a se amarrar na embarcação. A mitologia indígena tem Janaína que com o seu canto conduzia os homens às profundezas das águas. Mitos que se conciliam com a Iemanjá iorubana, numa combinação que permite ajustes curiosos como os que foram por mim observados em pejis de candomblés baianos, nos quais a deusa africana pintada nos quadros tinha longos cabelos loiros e olhos azuis.
Durante a sua estadia em Salvador a pesquisadora Ruth Landes acompanhou a entrega do presente da Mãe D’Água, da roça de Mãe Sabina. Não se tratava dos festejos realizados no dia 02 de Fevereiro, uma vez que antes disso ela já havia sido expulsa da Bahia. Os adeptos do candomblé seguiram andando em procissão para cumprir o ritual, que saiu das Quintas da Barra onde estava localizado o terreiro (trata-se do mesmo local onde funciona atualmente o Shopping Barra) e seguiram a pé até os saveiros, localizados na Barra, que lhes conduziram à península de Itapagipe, entregando o presente em Mont-Serrat. No percurso:
Várias sacerdotisas levavam o navio de brinquedo e os presentes que deviam ser jogados à água para a deusa, outras carregavam cântaros, graciosos como ânforas gregas, cheios de água sagrada que devia ser derramada sobre deusa no auge do sacrifício. Cantavam-se hinos acariciantes para a linda e rica Oxum, para a mais velha e voluptuosa Iemanjá, e confundiam-nas ambas, com Janaína(...) [Já no saveiro] Começou um novo cântico para a grande deidade das doenças, chamada Omolu, conhecida no mundo católico como São Lázaro e São Roque. Mulheres caíam em transe, de novo. Os cânticos e os transes se sucediam e era evidente o contentamento de todos. Sabina mandou que servissem comida - acaçá, laranjas, balas, pão-de-ló. Os atabaques roncavam o tempo todo... 61 - 61 LANDES, Ruth. Op. Cit., p. 221-2."