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A cidade é, visivelmente, um conjunto de formas que se acumulam e se transformam ao longo do tempo. Do ponto de vista semântico e sintático, são inumeráveis os signos que a urbe movimenta.
Devido a tal diversidade e complexidade das formas que a configuram, a cidade é um objeto inabarcável. Para tratar dos signos e da linguagem e analisar o acontecimento urbano, os estudos indicam a necessidade de partir de dois eixos temporais, o da simultaneidade e o da sucessão.
A reunião dos elementos nas duas temporalidades oferece o sentido que pode ser alcançado pelo signo urbano.
Veja-se o caso da formação de um bairro de Salvador, o Rio Vermelho. O seu povoamento surgiu já na colonização. Até o final do período português, a região foi sendo ocupada num processo agrário na periferia da capital. Depois, no final do século XIX, tornou-se algo bem distinto com a instalação de chácaras e casarões praianos. Ao ser atingido, na década de 1920, pela avenida beira-mar, o lugar compôs um novo significado de acordo com o novo ajuntamento de atividades que atraía.
Quando se formou o sistema viário das grandes avenidas da capital, o Rio Vermelho se configurou no que hoje é considerado um lugar de passagem e de entretenimento.
Tomando-o como exemplo concreto desse espaço selecionado da cidade, nota-se como ele detém um desenho específico e uma história própria, que compõe um panorama em mutação. Nessa verdadeira metamorfose da cidade, vale dizer, muitos componentes nem sequer foram ainda captados e entendidos pelos cidadãos soteropolitanos.
Quando a cidade é capturada na simultaneidade, há representações geográficas e culturais que predominam. Essas imagens, fornecidas dentro de um marco global, indicam que o Rio Vermelho é um lugar bem comunicado, que movimenta um verdadeiro cartograma do sentimento soteropolitano. As imagens são diversificadas, mas vale remarcar que, num momento específico, como é o caso da festa do dia 2 de fevereiro, o bairro exibe-se como o ponto de ebulição de Salvador.
Ao longo do tempo, a cidade se compõe segundo uma narrativa, na qual o bairro se insere dentro do campo das transformações metropolitanas. A história urbana do lugar ensina uma sucessão de eventos como a expansão urbana, a verticalização e a degradação ambiental. As transformações políticas e de governo são processos que também se configuram no espaço enquanto sucessão de diagramas sociais e modelos de intervenção. Não se deve imaginar que, com as mudanças, ocorra como uma harmonização dos elementos díspares. Na realidade se dá ao revés, e um lugar como o Rio Vermelho torna-se o fruto de tensões e disputas. Não se trata de um campo de possibilidades melodicamente ajustado, mas um bloco ocupado por elementos que se integram, forçosamente, mediante conflitos.
Fatos atuais marcantes da vida do bairro na forma de ocorrências conflitivas são a violência urbana e a degradação paisagística.
Perante a vitrine pública que é o Rio Vermelho, a violência urbana resulta de tensões sociais e disputas por recursos. O resultado dessa disputa é a segregação espacial que depende de soluções políticas, o que, por sua vez, sofre de entraves à cidadania.
Por sorte, o Rio Vermelho é um bairro de Salvador que funciona como ágora de uma metrópole expandida, multifocada e dispersa. Bem ou mal, é um lugar onde se procura conciliar os conflitos em que, entre outras coisas, os partidos políticos inserem seus comitês eleitorais. Artistas também abrem suas salas e fazem performances públicas. Há bares e espaços públicos atraentes para reunião de várias gerações de moradores e visitantes.
Em geral, quando se observam as mudanças do lugar, tende-se a captar um sentido das condições dominantes do processo histórico. A cidade articula, nessa zona da orla, um encontro dissonante de potencialidades e realizações culturais e políticas.
Essa consideração, no entanto, não precisa ser um quadro necessariamente negativo.
As virtuais possibilidades de plenitude do bairro continuam no ar. No lugar, autênticos modos de vida se cruzam. É importante constatar como, no Rio Vermelho de hoje, convergem os desejos coletivos da capital baiana.
Artigo publicado no Jornal A Tarde e autorizado pelo autor para republicar no Blog do Rio Vermelho.