A orla de Salvador e a história

Mesmo sem autorização prévia, até porque acho que ele não vai se incomodar, reproduzo abaixo artigo de Tasso Franco publicado na Tribuna da Bahia de hoje (31).

Por Tasso Franco*

A orla marítima de Salvador é dividida em duas partes: a Atlântica, que vai das praias do Farol da Barra à de Aleluia de Itapuã; e a da Baía de Todos os Santos, entre as praias do Porto da Barra e São Tomé de Paripe. A capital baiana, a exemplo do Rio de Janeiro, é uma das poucas cidades do país que tem esse privilégio de ser banhada por águas revoltas de mar aberto e águas em calmaria, represadas por uma baía com recortes belíssimos, enseadas, península e rios que descem das serras do Recôncavo e da Chapada Diamantina.

Ainda assim, ao longo da história, têm as orlas mais maltratadas do país e com ocupações de toda natureza, desde quiosques para vendas de bebidas alcoólicas e tendas de alvenaria onde se serve de tudo e se reside. Essa desordem, registre, não é uma coisa exclusiva da atual administração municipal, ela apenas piorou o que já existia, mas, uma situação que vem se arrastando há 100 anos quando o mar deixou de ser contemplativo para se tornar área para curar males da saúde pública e referência de lazer.

Os primeiros informes sobre poluição ambiental numa praia de Salvador datam da época das Capitanias Hereditárias, entre 1536 e 1549, durante a “guerra” entre os tupinambás organizados por Catarina Paraguaçu e Caramuru contra a exploração dos nativos por Francisco Pereira Coutinho, o Rusticão. Isolado na Vila Velha do Pereira, atual Porto da Barra, o Rusticão teve que se refugiar em Porto Seguro, e os nativos além de queimarem parte das casas da vila ainda lançaram os canhões bocas de fogo dos portugueses na praia.

Com isso, as peças da artilharia ficariam inutilizadas e devem ter sido resgatadas por Tomé de Souza, a partir de 1549. O próprio Tomé ao chegar a Baía de Todos os Santos não desembarcou no dia 29 de março, só fazendo isso no início de abril protegido por uma formação de “picas” com soldados lanceiros amparando-o à moda suíça. Ao instalar a cidade no altiplano da atual Praça Municipal e com sua expansão durante o período colonial para Além do Carmo, São Bento, roças do Tororó, Ribeira do Góis e Baixa dos Sapateiros os detritos dessas residências eram lançados ao mar pelos escravos em barricas.

Ou seja, quem tinha espaços em roças e áreas verdes fazia coco e xixi nesses locais a céu aberto e quem vivia na área urbana mais central, no Centro Histórico atual em mancha do Campo Grande ao Carmo usava penicos, bacias e vasos, e armazenava os dejetos em barricas que eram lançados ao mar, especialmente na praia da Preguiça e adjacências. Era uma fedentina horrível. Preservavam as ribeiras do Comércio que serviam de atracadouros para as naus estrangeiras e aquelas que faziam o trajeto para o Recôncavo.

Somente no início do século passado, quando Salvador já tinha mais de 350 anos foi que a praia passou a ser apreciada como elemento de lazer e também área arejada para curar males da saúde. Os planos urbanísticos já na República Velha colocaram plantas de esgotos sanitários e os barris de coco desapareceram de cena. A praia, até então só usada por pescadores artesanais ao longo das orlas, como aliás ainda ocorre até os dias atuais, virou objeto de desejo da classe média alta, e os jovens passaram a exibir seus dotes físicos nesses espaços, inicialmente na Barra, com o advento dos shortes estilizados e maiôs.

Lembro que nos anos iniciais da década de 1960, nos jogos do Brasília em Roma e no Cantagalo, não havia barraqueiros e vendedores de produtos diversos nas praias, e após os babas e as partidas do campeonato de praia, as comemorações eram feitas nos bares das Ruas Barão de Cotegipe e Graciliano de Freitas. Já na praia Pituba, ainda área de veraneio com a maioria das ruas ainda sem calçamento, nos verões do final da década, algumas tendas já vendiam cervejas e acarajés.

A partir dos anos 1970, a situação desandou de vez e as orlas foram ocupadas de ponta-a-ponta por todo tipo de traquitana, barracas, tendas, quiosques, vendedores de toda natureza, gerando essa desordem que existe até os dias atuais. A Terceira Ponte inaugurou, nessa época, as melhores barracas da cidade e imaginava-se que a Prefeitura, desde aquele momento, pudesse organizar um modelo que fosse capaz de atender aos banhistas e não degradasse tanto o meio ambiente. Ledo engano.

Salvador tem uma característica de outras cidades litorâneas, e não adianta importar modelos bem sucedidos de ocupação de espaços da orla como em Fortaleza, Maceió, Rio de Janeiro, Guarujá, Santos, etc, porque aqui a cultura da desordem se arraigou de tal forma na sociedade que esses modelos viram letras mortas. Uma baiana de acarajé arma uma tenda onde deseja, e pode ser em frente ao Farol da Barra ou na praia de São Tomé, e fica por isso mesmo rezando aqueles que primam pela desordem que se trata de uma tradição, de povo de santo e por aí vai.

Agora, a Prefeitura está tentando, mais uma vez, dar um mínimo de decência ao favelão que deixou prosperar nos últimos anos na Orla Atlântica com a derrubada de barracas inservíveis e aquelas de alvenaria. Vai adiantar pouco ou quase nada porque não tem equipes para fiscalizar as duas orlas e se você quer assistir sujeira, bagunça e um exemplo pronto e acabado da cultura da “esculhambação” vá a praia da Ribeira.

*Tasso Franco é jornalista e editor do site www.bahiaja.com.br.

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