Entrevista - Canalização dos rios mascara problemas urbanos


A falta de planejamento urbano associada à canalização dos rios tem gerado inúmeras tragédias. Nesta entrevista, a geóloga Lígia Nunes Costa, docente em cursos de especialização na área ambiental, fala sobre a falta do uso racional do espaço hídrico. Mestre em geoquímica e meio ambiente, ela alerta que o aumento da impermeabilização do solo intensifica a ocorrência de grandes enchentes, reiterando a responsabilidade do poder público na preservação de vidas.

Revista Crea-BA - Qual a explicação para a degradação dos espaços hídricos?
Lígia Nunes Costa - A degradação do espaço hídrico reflete o mesmo padrão de uso e manejo inadequado praticado nas maiores cidades do mundo. Este padrão decorre da ruptura na relação cidade-rio, amplamente justificada pela expansão da malha urbana e que é apontada como responsável pelas decisões equivocadas e insustentáveis, com muitos rios desnecessariamente canalizados, outros transformados em esgotos a céu aberto e/ou encapsulados.

RC - A recuperação ambiental desses mananciais tem avançado?
LNC - Pressionado, o poder público vem paulatinamente preconizando um uso racional dos recursos hídricos, reconhecendo a necessidade da conservação e recuperação ambiental. A atual Política Nacional de Recursos Hídricos instituiu a bacia hidrográfica como unidade de gestão, coordenada por comitês de Bacia Hidrográfica. Cabe a cada comitê verificar as atividades que devem ser realizadas na bacia, incluindo projetos e obras de revitalização de rios. Se, por um lado, tal marco representou um avanço para os apelos da sociedade brasileira, estão longe de serem alcançados os objetivos de recuperação, preservação e conservação dos mananciais do País.


RC - Quais são as consequências diretas do tamponamento dos canais?
LNC - A artificialização dos canais de drenagem é uma prática corrente na maioria das cidades brasileiras, que, infelizmente, tem ido de encontro à tendência adotada mundialmente de resgate das paisagens naturais, tão bem sucedida, a exemplo do Rio Cheonggyecheon, na Coreia do Sul. Entre suas conseqüências, pode-se destacar a alteração do ciclo hidrológico. Com o leito de rios e córregos revestidos por materiais impermeáveis, a água não se infiltra no solo e, consequentemente, não chega aos lençóis freáticos subterrâneos. Sem obstáculos naturais, os cursos d’água correm mais rápido em canais lineares. Evitam-se inundações em um determinado trecho, mas elas passam a ser mais destrutivas em trechos mais à frente, uma vez que a água chega com uma velocidade bem maior. A aceleração das águas contribui para a eliminação das comunidades aquáticas.


RC - A impermeabilização do solo e a canalização dos rios agravam a ocorrência de enchentes?
LNC - As enchentes têm sido causadas, na grande maioria das vezes, pela impermeabilização do solo. A canalização é, na verdade, uma máscara para os problemas urbanos. Essa medida ignora as características naturais dos cursos d’água e, principalmente, o fato de eles serem fundamentais à regulação climática, à biodiversidade, à vida. As canalizações de rios e córregos urbanos produzem um efeito cumulativo e sinérgico de bombas d’água. As margens de rios e córregos devem escoar em leito natural. A infiltração é importante para regularizar a quantidade de água dos rios e córregos e proporcionar seu escoamento subterrâneo até os mares e oceanos. Sem infiltrar, mais água é retida na superfície, provocando inundações nas áreas mais baixas. Cobertos por grandes avenidas, muitos cursos d’água são lembrados somente ao transbordarem, quando o volume de água e lixo ultrapassa a capacidade de retenção de suas galerias.


RC - Então as tragédias não são resultado apenas do aquecimento global?
LNC - Provavelmente, os repetidos estragos causados pelo regime de chuvas não podem ser atribuídos exclusivamente à crise do aquecimento global, mas compartilhados com o poder público, que negligencia a sua ação fiscalizadora. Constatações frequentes de licitações irregulares, obras mal executadas, manutenção de infraestruturas deficientes, ocupação desordenada de zonas urbanas praticamente impermeabilizadas, ausência de saneamento básico, encostas desprotegidas, rios assoreados, enfim, uma longa série de descalabros que castigam a população impassível e conformada. Mas o Brasil não está sendo penalizado sozinho na questão das enchentes, decorrente de mudanças climáticas. Sabe-se que é uma questão mundial e que tais fenômenos irão se repetir.

RC - Como implantar medidas eficientes de combate às enchentes?
LNC - Há medidas de diferentes complexidades possíveis de ser implantadas e cujo custo é bem menor do que o pago pelo descaso sistemático. A revista Veja, após consultar diversos especialistas, listou uma série de medidas que, minimizariam a intensidade destes desastres, com destaque para mapeamento das áreas de risco; fiscalização da ocupação irregular do solo; remoções em áreas de risco; contenção de encostas; construções mais seguras; sistema eficaz de radares e alertas de emergência. Em todas as medidas percebe-se que o problema perpassa questões de cunho social, político administrativo, legal, de saúde pública e tecnológico. Estas medidas não possuem eficácia se não tiverem uma interação entre si e um interesse responsável para tornar realidade o que o mundo todo já sabe: vai chover novamente, vidas precisam ser preservadas.

Por: Cleide Nunes

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9 Comentários
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  1. Nessa entrevista vem a tona a discussão sobre fechar ou não os antigos rios que hoje se transformaram em canais de esgoto. A população de um modo geral é favor de fechar pensando em resolver o problema de imediato, já em países do chamado primeiro mundo (EUA e Europa) a solução tem sido despoluir os rios, inclusive reabrindo antigos rios que tinham sido cobertos.

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  2. O interessante é que por aqui só se copia o que é ruim. Quando todo o Mundo está discutindo a questão da água a lógica seria despoluir os rios e não cobrir.

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  3. Espero que na proxima reunião, essa pauta seja ampliada para todo bairro e bairros e ruas e avenidades de vale, e contemplados por essas vias de trafego..

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  4. No caso específico do Rio Vermelho cobrir o Canal - que um dia se chamou rio Camurujipe - não será a solução já que a sujeira desembocará sempre na praia. Melhor seria canalizar todo o esgoto que cai nele e deixar o rio renascer. Com os milhões de reais destinados ao projeto Bahia Azul poderia ser feito isso.

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  5. A morte do Camurujipe

    http://soteropolitanosmeioambiente.wordpress.com/2007/12/30/a-morte-do-camurujipe/

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  6. Quem passar pela Vasco da Gama verá que o rabalho tem um ritmo apressado. Ontem à tarde, sábado, a retro-escavadeira estava numa atividade intensa derrubando tudo em que a sua lança e caçamba alcançavam. Hoje, não passei por lá, não sei informar...Será mais uma grande obra a se lamentar...

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  7. amanha prometo fazer um estudo e ver como podemos trabalhar para modificar isso com o bairro. existe associação pierre verger e solar boa vista no engenho velho de brotas. e arquitetura na federação ufba..

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  8. Espero que essa solução de despoluir dê certo. Mas conhecendo como funciona o sistema, nem vão despoluir, porque nunca o fizeram. E nem vão fechar e deixar como os outros canais da Centenário e Imbui, como eles querem fazer. E ainda vão dizer que não fecharam porque os moradores não quiseram. Eles adoram tirar o corpo fora, e com um álibi desse então (os moradores não querem que feche), vai ser sopa no mel. E o suado dinheirinho dos nossos impostos escoará por esgotos mais imundos da política soteropolitana.

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  9. São Paulo está assentada sobre 1500km de rios e córregos #diadaagua

    http://www.samshiraishi.com/sobre-rios-e-corregos-diadaagua/

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